Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo...
O Ano da Misericórdia é uma celebração jubilar extraordinária, que coincide com os 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II. Por isso, rememorando a mensagem de São João XXIII trazemos presente que “em nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade”. Esse é o convite que o Papa Francisco refaz aos cristãos de nosso tempo, lançar sobre o nosso próximo um olhar de misericórdia.
Podemos perceber que no coração de toda a espiritualidade vicentina está proeminente o caráter fundamentalmente misericordioso da caridade com o próximo. Por isso, somos convidados a celebrar junto com este Ano Jubilar, o Centenário da presença vicentina em Passo Fundo, trazendo presente o estudo do texto de São Lucas, a Parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37).
Evangelho de Jesus Cristo, segundo São Lucas.
Um doutor da Lei se levantou e, querendo experimentar Jesus, perguntou: “Mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus lhe disse: “Que está escrito na Lei? Como lês?” Ele respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com todo o teu entendimento; e teu próximo como a ti mesmo!” Jesus lhe disse: “Respondeste corretamente. Faze isso e viverás” (v. 25-27).
No início da passagem pode-se perceber as más intenções do doutor da Lei, que coloca sua pergunta em termos de religiosidade deuteronomista, onde “para viver é preciso cumprir” (Dt 4,1; 5,33; 8,1; 16,20; 30,16). A mesma pergunta possui uma mudança de horizonte da perspectiva judaica, no uso da Palavra “Herdar”. No Antigo Testamento esta herança é a terra, no Novo Testamento, o doutor da Lei aponta a possibilidade de uma nova interpretação, uma vida perpétua no mundo novo.
Esta pergunta é explicitada pela própria Lei, onde está sua resposta, fato este que faz com que Jesus não responda a pergunta, mas leva o seu inquisidor a dar a resposta. Esta é a pedagogia de Cristo, que não legisla, mas impele seu interlocutor ao cumprimento pleno da Lei (Mt 5,17-18; Lc 16,17). Por isso, Jesus questiona a postura dos fariseus e doutores da Lei que ficam presos a um código de leis, os quais por si só não conseguem traduzir-se em vida.
É interessante perceber na narrativa de Lucas, que o doutor da Lei consegue chegar a síntese de toda a Lei (Decálogo) e os demais preceitos rabínicos (contados como 613) em dois mandamentos, o amor a Deus e ao próximo (Dt 6,5; Lv 19,18). Mas perceba que no Evangelho de Mateus esta síntese é feita por Jesus (Mt 12,28; 22,27-29), porém, percebemos que a preocupação do Evangelista é mostrar que os ensinamentos de Jesus estão atingindo as pessoas da época e região de Jesus. Esta síntese une a religião e a ética, apontando o que significa ser humano.
O homem consegue a plenitude de sua vida quando sai de si mesmo, onde é importante perceber a construção textual que coloca Deus e o próximo como termos equivalentes e correlatos (1Jo 4,20-21; 1Pd 1,8; Mt 22,36-40; Jo 14,15-21; 15,17). Por isso, segundo Jesus, a síntese está correta, porém, agora é necessário cumprir o que foi dito, conforme a religiosidade da Lei. Os dois mandamentos são a síntese e a alma de todos os outros, pois somente o amor dá sentida à Lei e a justifica.
Ele, porém, querendo justificar-se, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?” (v. 28).
A nova pergunta do doutor da Lei é capciosa, porém, revela o seu caráter profundamente furtivo, pois encarou a interpelação de Jesus como repreensão e busca agora uma escapatória, tentando neutralizar a validez do ensinamento. O problema não está em identificar a Deus, mas sim ao próximo, que na tradição Levítica eram os israelitas. Esta tradição permite que os doutores da Lei possam escolher quem é o próximo a partir da sua prática de excluir pecadores e não observantes da Lei.
Jesus não tem escapatória frente a pergunta do doutor da Lei, que optará por uma parábola para não justificar esta prática, mas para criticar e corrigir a conduta. Não basta apenas saber o que fazer, mas é necessário saber fazer.
Jesus retomou: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes. Estes arrancaram-lhe tudo, espancaram-no e foram-se embora, deixando-o quase morto. Por acaso, um sacerdote estava passando por aquele caminho. Quando viu o homem, seguiu adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu o homem e seguiu adiante, pelo outro lado. Mas um samaritano, que estava viajando, chegou perto dele, viu, e moveu-se de compaixão (v. 30-33).
Esta parábola possui um caso típico para o exercício e a prática da misericórdia: uma pessoa que caiu nas mãos de assaltantes, vítima indefesa, jaz indefesa num caminho de curvas e abismos, à beira da morte. Percebe-se que é descrito como “um homem” qualquer, sem pátria nem ofício, anônimo, ou seja, constitui-se como elemento primordial para a prática de misericórdia, indistintamente. Encontra-se necessitado de um olhar de misericórdia.
Este homem representa toda a humanidade em meio as suas misérias cotidianas, vítimas tanto da cidade como do campo, não só espoliados de seus bens materiais, mas também seus bens espirituais e sua própria dignidade como pessoas. Junto deste personagem percebe-se a presença de mais três personagens, a saber: um sacerdote, um levita e um samaritano. Os dois primeiros homens do culto, atentos às prescrições legais da pureza ritual, e o último, um meio pagão, considerado herege (Jo 8,48), porém, compassivo e solícito.
A primeira pessoa a passar pelo homem que se encontra mergulhando na miséria e desgraça de seu infortúnio é o sacerdote. Este é um homem da religião, preocupado com o culto, com o Templo e o risco de se tornar impuro ao tocar em qualquer cadáver ou no sangue do moribundo (Nm 19,11-16; Lv 21,1-2). A passagem vai além, mostra que o sacerdote segue adiante, passando pelo outro lado. Ele torna-se alheio as necessidades do outro, procurando não envolver-se com a situação, o que o torna apático as misérias humanas.
A segunda pessoa a passar pelo homem é o levita, um doutor da Lei, que ao vê-lo caído passou adiante. É a mesma preocupação da pureza ritual prescrita na tradição deuteronomista, que faz o sacerdote e o levita tornarem-se alienados das necessidades do outro. Essa alienação faz com que não percebam no outro o próximo que o doutor havia proclamado em sua síntese para Jesus. É a tensão que existe entre o culto e a ajuda ao próximo, a promoção da justiça social, uma constante nos escritos dos profetas, livros sapienciais e salmos (Is 1,10-20; Jr 7; Sl 50; Eclo 34,18 – 35,10). Os dois primeiros a passarem pelo homem são pessoas do clero da época, que separam a compaixão do culto, e não conseguem aproximar-se de quem passa necessidades.
A terceira pessoa que passa pelo homem a beira do caminho é um samaritano, considerado gentio pelos judeus, e também um herege para tradição judaico-deuteronomista. Ele é considerado um impuro, um inimigo e marginalizado. Porém, é ele a quem a tradição atribui o título de “Bom Samaritano”, pelo seu gesto de generosidade e compaixão para com o outro, o seu próximo. Na tradição escriturística, o termo próximo corresponde a um termo hebraico que significa vizinho (Pr 25,17; 27,14) e/ou amigo (Pr 27,9; 17,17; Eclo 37,1-6). Este conceito é uma relação de reciprocidade, onde um considera e trata do outro como um próximo, um amigo. A resposta de Jesus começa aqui, onde ele aponta a necessidade da cultura de tornar-se próximo.
Aproximou-se dele e tratou-lhe as feridas, derramando nelas óleo e vinho. Depois colocou-o em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, pegou dois denários e entregou-os ao dono da pensão, recomendando: ‘Toma conta dele! Quando eu voltar, pagarei o que tiveres gasto a mais’ (v. 34-35).
Esta é a característica central que Jesus dá importância e leva o doutor da Lei a refletir sobre sua prática. O Samaritano “aproximou-se e tratou-lhe as feridas”. É aqui que se revela o olhar de misericórdia sobre as necessidade do outro, o próximo. Tanto pelo samaritano ser marginalizado pelos judeus, que ele apresenta-se como o paradoxo e paradigma da misericórdia: o marginalizado que se compadece. O ato de se compadecer deve-se ao seu espírito de solicitude e conhecimento da miséria humana, pois ele também compartilha com o homem a beira da estrada, o sentimento de abandono e esquecimento, onde todos querem “passar longe”. A atitude do perfeito cumprimento da Lei está naquele que para os outros não cumpria as obrigações e prescrições religiosas.
O samaritano usa do que é dele para cuidar do próximo, o óleo e o vinho são medicamentos que suaviza e protege a ferida, enquanto o vinho desinfeta. Monta-o em seu animal e leva-o a uma pensão, “onde cuidou dele”. A misericórdia aqui não é simplesmente assistir e ajudar a beira do caminho, mas também impele à prática do cuidado, do zelo e da proteção. Ele não simplesmente cuida do homem, vítima da violência do mundo, mas presta a ele os cuidados necessários para que recupere sua saúde e sua dignidade. Isto fica evidente quando lê-se que ele pede ao dono da pensão para que “tome conta dele”.
A obra da misericórdia que se dá neste samaritano é evidenciada pelo caráter de desapego material, dando a entender que para ele não interessa se vai ou não ser restituído no que gastou para cuidar do seu próximo. “Quando eu voltar, pagarei o que tiveres gasto a mais”. Ele vai além das atitudes de qualquer um dos outros dois que passaram sem compadecer-se do homem que estava a beira do caminho. Ele anuncia que vai voltar, ou seja, está preocupado com a recuperação do próximo, pois ele se aproxima e ajuda o homem necessitado.
Na tua opinião – perguntou Jesus –, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Ele respondeu: “Aquele que usou de misericórdia para com ele”. Então Jesus lhe disse: “Vai e faze tu a mesma coisa” (v. 36-37).
Como foi visto a parábola apresentou três perspectiva para viver e encontrar o núcleo, o coração de toda a Lei. Por isso, Jesus conclui devolvendo a pergunta sobre quem seria o próximo para que o doutor da Lei aponte a resposta que encontrou “qual dos três foi o próximo do homem”. O homem da Lei reponde: “Aquele que usou de misericórdia para com ele”. Portanto, é preciso celebrar o amor que torna homens e mulheres cada vez mais próximos e íntimos, aprendendo o mandato de Jesus “Vai e faze tu a mesma coisa”.
Hoje é preciso resgatarmos tanto o questionamento do doutor da Lei, quanto a resposta que ele dá, a fim de que em nossas comunidades, ao comungarmos da Palavra e do Pão, transformemos nossa religião e nossa fé num exercício constante e perene da Misericórdia de Deus. Devemos acolher com solicitude o convite que a Igreja nos faz de sermos “Misericordiosos como o Pai”, lançando sobre toda a realidade humana “Um olhar de caridade”. Pois, a caridade e a misericórdia são irmãs que dão-se as mãos para construir um mundo mais humano.
A Igreja também possui seu Código de Leis, que orientam e conduzem a sua vida no peregrinar sobre o mundo, mesmo assim, persiste em seu coração o ardente desejo de ser Mãe e Mestra para o mundo. Como esposa de Cristo e sob a proteção da Bem Aventurada Virgem Maria, ela deve anunciar ao mundo a verdade, a justiça e a misericórdia. Sua Lei máxima está inscrita no coração de seus pastores, nas Sagradas Escrituras, e faz resplandecer no Sagrado Magistério quando anuncia ao encerrar o Código de Direito Canônico que “observada a equidade canónica e tendo-se sempre diante dos olhos a salvação das almas, que deve ser sempre a lei suprema na Igreja” (Cânon 1752).
Esta é a conhecida lei da salus animarum, a lei suprema de toda a Igreja, em consonância com o que é celebrado e foi vivenciado pelos primeiros discípulos, junto de Nosso Senhor Jesus Cristo. A salvação das almas não significa um apelo apenas espiritual, mas é um chamado para a proclamação da dignidade integral do homem, que deve ter suas misérias cuidadas e atendidas pela Igreja. Como somos membros da Igreja, cabe a nós a missão de proclamar esta salvação por meio de nossas obras de misericórdia.
Cfd. Ângelo Dutra de Oliveira
DECOM – Departamento de Comunicação
Nenhum comentário:
Postar um comentário